A memória já foi objeto de estudos de várias áreas da ciência, mas o que é esse mecanismo afetivo-intelectual na vida da gente? Percebo a memória como uma grande nebulosa que pinta determinados momentos com tintas nítidas. Verdade, ilusão, recriação?
Houve um acontecimento na minha adolescência que envolveu-nos as três Marias: a Cristina, a Eduarda e a Fernanda. Qual das três comeu a banana e errou a mira da lata de lixo, deixando a casca no chão da área de serviço? A Cristina diz que não foi ela, a Eduarda (grande apreciadora de bananas), também e a Fernanda é a caçula, que ficou com a culpa. Foi um acontecimento importante na época porque envolveu um castigo: não assistir na TV ao programa Jovem Guarda. Nossas versões conflitam e cada uma tem certeza de que a sua é a real.
Portanto, ler relatos de memória ou autobiográficos implica na aceitação implícita das memórias do outro.
Baú de Ossos, de Pedro Nava, foi o primeiro livro de memórias que li. Era 1972, ditadura militar e tal, havia uma efervescência cultural no Rio inigualável. Autor tardio, tinha 69 quando lançou o primeiro livro de uma série de seis. Foi leitura obrigatória na cidade. A linguagem de Nava é leve, divertida, crítica e muito livre - todos os assuntos, todos os aspectos, todas as pessoas foram abordados. Não lembro mais de detalhes dos livros, mas a impressão que me ficou é única - como introdução à obra memorialística é magistral. Houve briga em casa pelo volume entre minha mãe, meu pai e mim: quem pegava primeiro, lia até abandonar a leitura, se bobeasse, o livro estava em outras mãos. E comentávamos, como comentávamos...
Pentimento foi o segundo livro de memórias que marcou meu interesse pelo gênero. O título significa "aparecimento, em telas, de pinturas ou desenhos feitos anteriormente" e descreve a percepção de memória como uma sucessão de fatos, sentimentos, impressões que vão sendo descamados. Lillian Hellman, teatróloga, escritora e personagem influente na vida intelectual americana, foi acusada, junto com seu companheiro de vida inteira, Dashiel Hemmett, de atividades antiamericanas durante o macartismo. São cinco textos sobre pessoas com as quais se relacionou, um deles, Julia, virou filme pela 20th Century Fox. Sua prosa é límpida, direta, muito econômica e carregada de sinceridade.
Invenção e memória, de Lygia Fagundes Telles é a perfeita narrativa de memória porque mistura elegantemente os fatos reais com essa névoa que permeia nossas lembranças. Elegância, na verdade é sinônimo de Lygia. Prosa precisa, aguda, crítica, um dos melhores textos da literatura contemporânea, Lygia desvenda o ser humano (o outro) em suas mazelas, dificuldades, limitações e dores como pouquíssimos autores têm coragem de fazer. Tenho duas dívidas de gratidão com essa autora: foi ela quem me ajudou a introduzir meus alunos em literatura e quem transformou meu filho num grande leitor.
Livros citados:
Nava, Pedro. Baú de Ossos. 1ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora/Sabiá. 1972
Hellman, Lillian. Pentimento. s/e. New York: New American Library. 1973
Telles, Lygia Fagundes. Invenção e Memória. 1ª edição. Rio de Janeiro: Rocco. 2000
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Eu não comi a banana, mas levei a culpa! Muito bom e muito familiar. Bom demais. Fi
ResponderExcluirExcelente. Você está me tornando um entusiasta - de sua obra. Ora micro, oxalá se torne macro.
ResponderExcluirEngraçado, a memória, diferente da sensação, muda com o tempo. A sensação é algo que se tem no instante, a impressão é o que sobra dela misturada com reflexões, e a memória vai se ajustando, se reconstruindo.
ResponderExcluirBevis, encantadores seus textos!
ResponderExcluirMemórias...Começo a recordar nossas aulas de Literatura, os contos de Lygia Fagundes Telles: Venha ver o por do sol, Jardim Selvagem, As formigas... Cada momento tornava-se único, especial.
Envolventes, as aulas faziam com que ficássemos com aquela sensação de “quero mais”. A-p-a-i-x-o-n-a-n-t-e.
Saudoso abraço.