Quem me conhece um
pouquinho, sabe que não gosto muito de animais perto de mim. Nada
contra bichos, quero-os bem cuidados e odeio quem os maltrata, mas
eles lá e eu cá.
Entretanto, um dia,
minha irmã apareceu aqui em casa com uma linda gatinha de pelo
branco com manchas douradas e olhos também dourados. Era arisca e
desconfiada. Parece que a história dela não tinha sido das mais
felizes e, recolhida da rua por uma veterinária – uma dessas almas
que se condoem com os bichinhos abandonados, foi adotada por
Fernanda. Portanto, Capitu é a gata da Fernanda, adorável como a dona.
Existe nome mais
apropriado do que Capitu para uma gata? Lembram-se da descrição que
Machado faz de sua personagem: “Olhos de ressaca? Vá, de ressaca.
É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que
fluido misterioso e energético, uma força que arrastava para
dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.”
E de Capitu para
Capitulinda foi um passo, porque ela é isso mesmo, uma linda. Linda,
levada e dissimulada, como diz o João Dias da Capitu machadiana:
“olhos de cigana oblíqua e dissimulada.”
Gata agitadíssima a
partir de certo horário noturno, gosta de brincar de buscar bolinha
de papel, não ronrona nas pernas da gente nem gosta de ficar no colo
sendo afagada, mas quer atenção, muita atenção, talvez pelas
recordações de tempos menos felizes.
Cachorros fazem
estardalhaço para obter atenção, Capitu, não: faz peraltices. Na
casa de minha irmã, há um balcão de mármore que separa a sala da
cozinha e sobre esse balcão há
uma série de condimentos, azeites, vinagres e especiarias que
Fernanda usa para preparar seus quitutes. Estávamos conversando, eu,
em pé, próxima ao balcão e Fernanda do outro lado, na sala, quando Capitulinda, delicadamente, com gesto mais elegante que Audrey
Hepburn admirando joias na Tiffany's, empurrou para o chão um moedor
de sal, que devidamente se espatifou no chão. Ela o fez tão
intencionalmente que não tirou os olhos dos meus enquanto o fazia: dissimulada. Fiquei pasmada! E tem repetido esse gesto muitas vezes, segundo a
dona, tanto quando fica aborrecida por se sentir sozinha quanto por
não receber a atenção que acha que merece.
Outra vez tinha descido
com um arranjo de flores, rosas, alguma folhagem e gipsofilas.
Coloquei o vaso na beira do balcão e imediatamente Capitu subiu, cheirou
as flores e começou a despetalar uma das rosas com uma delicadeza de
princesa comendo aspargos com pinça. Uma coisa.
Sei que um animal de
estimação dá um trabalho danado – idas frequentes ao
veterinário, banhos, escovação, alimentação, carinho – mas
sei também que Capitu trouxe para Fernanda um encanto muito especial
que a fez mais alegre e tornou-lhe a vida mais leve.
Assis, Machado de. Dom Casmurro. 3ª edição ilustrada, Rio de Janeiro: Aguilar, 1971. Obras Completas, vol I, p.843 - cortesia de Maurício Gomes Bevilaqua e Marina Couto Bevilaqua.
Assis, Machado de. Dom Casmurro. 3ª edição ilustrada, Rio de Janeiro: Aguilar, 1971. Obras Completas, vol I, p.843 - cortesia de Maurício Gomes Bevilaqua e Marina Couto Bevilaqua.