quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Capitulinda


Quem me conhece um pouquinho, sabe que não gosto muito de animais perto de mim. Nada contra bichos, quero-os bem cuidados e odeio quem os maltrata, mas eles lá e eu cá.

Entretanto, um dia, minha irmã apareceu aqui em casa com uma linda gatinha de pelo branco com manchas douradas e olhos também dourados. Era arisca e desconfiada. Parece que a história dela não tinha sido das mais felizes e, recolhida da rua por uma veterinária – uma dessas almas que se condoem com os bichinhos abandonados, foi adotada por Fernanda. Portanto, Capitu é a gata da Fernanda, adorável como a dona.

Existe nome mais apropriado do que Capitu para uma gata? Lembram-se da descrição que Machado faz de sua personagem: “Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.”

E de Capitu para Capitulinda foi um passo, porque ela é isso mesmo, uma linda. Linda, levada e dissimulada, como diz o João Dias da Capitu machadiana: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada.”

Gata agitadíssima a partir de certo horário noturno, gosta de brincar de buscar bolinha de papel, não ronrona nas pernas da gente nem gosta de ficar no colo sendo afagada, mas quer atenção, muita atenção, talvez pelas recordações de tempos menos felizes.

Cachorros fazem estardalhaço para obter atenção, Capitu, não: faz peraltices. Na casa de minha irmã, há um balcão de mármore que separa a sala da cozinha e sobre esse balcão há uma série de condimentos, azeites, vinagres e especiarias que Fernanda usa para preparar seus quitutes. Estávamos conversando, eu, em pé, próxima ao balcão e Fernanda do outro lado, na sala, quando Capitulinda, delicadamente, com gesto mais elegante que Audrey Hepburn admirando joias na Tiffany's, empurrou para o chão um moedor de sal, que devidamente se espatifou no chão. Ela o fez tão intencionalmente que não tirou os olhos dos meus enquanto o fazia: dissimulada. Fiquei pasmada! E tem repetido esse gesto muitas vezes, segundo a dona, tanto quando fica aborrecida por se sentir sozinha quanto por não receber a atenção que acha que merece.

Outra vez tinha descido com um arranjo de flores, rosas, alguma folhagem e gipsofilas. Coloquei o vaso na beira do balcão e imediatamente Capitu subiu, cheirou as flores e começou a despetalar uma das rosas com uma delicadeza de princesa comendo aspargos com pinça. Uma coisa.

Sei que um animal de estimação dá um trabalho danado – idas frequentes ao veterinário, banhos, escovação, alimentação, carinho – mas sei também que Capitu trouxe para Fernanda um encanto muito especial que a fez mais alegre e tornou-lhe a vida mais leve. 




Assis, Machado de. Dom Casmurro. 3ª edição ilustrada, Rio de Janeiro: Aguilar, 1971. Obras Completas, vol I, p.843 - cortesia de Maurício Gomes Bevilaqua e Marina Couto Bevilaqua.