sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Sobre memória

A memória já foi objeto de estudos de várias áreas da ciência, mas o que é esse mecanismo afetivo-intelectual na vida da gente? Percebo a memória como uma grande nebulosa que pinta determinados momentos com tintas nítidas. Verdade, ilusão, recriação?

Houve um acontecimento na minha adolescência que envolveu-nos as três Marias: a Cristina, a Eduarda e a Fernanda. Qual das três comeu a banana e errou a mira da lata de lixo, deixando a casca no chão da área de serviço? A Cristina diz que não foi ela, a Eduarda (grande apreciadora de bananas), também e a Fernanda é a caçula, que ficou com a culpa. Foi um acontecimento importante na época porque envolveu um castigo: não assistir na TV ao programa Jovem Guarda. Nossas versões conflitam e cada uma tem certeza de que a sua é a real.

Portanto, ler relatos de memória ou autobiográficos implica na aceitação implícita das memórias do outro.

Baú de Ossos, de Pedro Nava, foi o primeiro livro de memórias que li. Era 1972, ditadura militar e tal, havia uma efervescência cultural no Rio inigualável. Autor tardio, tinha 69 quando lançou o primeiro livro de uma série de seis. Foi leitura obrigatória na cidade. A linguagem de Nava é leve, divertida, crítica e muito livre - todos os assuntos, todos os aspectos, todas as pessoas foram abordados. Não lembro mais de detalhes dos livros, mas a impressão que me ficou é única - como introdução à obra memorialística é magistral. Houve briga em casa pelo volume entre minha mãe, meu pai e mim: quem pegava primeiro, lia até abandonar a leitura, se bobeasse, o livro estava em outras mãos. E comentávamos, como comentávamos...

Pentimento foi o segundo livro de memórias que marcou meu interesse pelo gênero. O título significa "a
parecimento, em telas, de pinturas ou desenhos feitos anteriormente" e descreve a percepção de memória como uma sucessão de fatos, sentimentos, impressões que vão sendo descamados. Lillian Hellman, teatróloga, escritora e personagem influente na vida intelectual americana, foi acusada, junto com seu companheiro de vida inteira, Dashiel Hemmett, de atividades antiamericanas durante o macartismo. São cinco textos sobre pessoas com as quais se relacionou, um deles, Julia, virou filme pela 20th Century Fox. Sua prosa é límpida, direta, muito econômica e carregada de sinceridade.

Invenção e memória, de Lygia Fagundes Telles é a perfeita narrativa de memória porque mistura elegantemente os fatos reais com essa névoa que permeia nossas lembranças. Elegância, na verdade é sinônimo de Lygia. Prosa precisa, aguda, crítica, um dos melhores textos da literatura contemporânea, Lygia desvenda o ser humano (o outro) em suas mazelas, dificuldades, limitações e dores como pouquíssimos autores têm coragem de fazer. Tenho duas dívidas de gratidão com essa autora: foi ela quem me ajudou a introduzir meus alunos em literatura e quem transformou meu filho num grande leitor.

Livros citados:
Nava, Pedro. Baú de Ossos. 1ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora/Sabiá. 1972
Hellman, Lillian. Pentimento. s/e. New York: New American Library. 1973
Telles, Lygia Fagundes. Invenção e Memória. 1ª edição. Rio de Janeiro: Rocco. 2000



segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Maria Clara Pinheiro Guimarães

Na década de 60, um grupo de escritores, jornalistas e doidos de pedra resolveu fazer um suplemento cultural no jornal carioca O dia. Era um jornal do qual jorrava sangue se o espremessem. Daí o inusitado da proposta. Não me lembro bem, mas acho que o suplemento não durou sequer um ano. Minha mãe foi convidada a escrever uma coluna semanal cujo nome era De livros & de mulheres, daí o nome deste blog.

Maria Clara Pinheiro Guimarães - era assim que ela assinava a coluna - já tinha seus cinco filhos e muito tempo na estrada dos livros. Leitora voraz e inteligente, teria sido uma boa crítica literária se se permitisse a tanto. Era leitora de vasto espectro, mas gostava especialmente de literatura inglesa e americana. Ela quem me introduziu a Jane Austen, Charles Dickens, Oscar Wilde, Conan Doyle, Daniel Dafoe, Evelyn Waugh, Virginia Wolf, Daphne du Maurier, Iris Murdoch; aos americanos Hemingway, Scott Fitgerald, Mark Twain, Gore Vidal, Philip Roth, - e tantos outros que descobrimos juntas - Doris Lessing, Truman Capote, Raymond Chandler, Dashiel Hammet, P. D. James - a lista é enorme.

Maria Clara era também cinéfila e gostava de quase todos os gêneros: policial, aventura, espionagem (Sean Connery era um de seus favoritos), faroeste - tão eclética no gosto cinematográfico quanto no literário.

C
larinha costurava, bordava, fazia tapeçaria e cozinhava - sempre muito bem. Não havia tarefa a que se propusesse fazer que não fizesse com extremo zelo e capricho. Tudo o que saía de suas mãos tinha acabamento perfeito. Houve uma época em que se dedicou a fazer aventais de algodão cru: numa época em que cozinhar ainda não era moda, produziu peças lindas, com acabamento de sinhaninha colorida em toda a volta do avental e um monograma em tons degradês da mesma cor da sinhaninha. Todas as mulheres, cozinheiras ou não, queriam ter um.

P
or que escrever no passado? Muita gente não entende isso, mas mamãe tem mal de Alzheimer e já não se lembra de quem é, e a Maria Clara que amei e que foi minha grande interlocutora a vida inteira, não existe mais. A vida é má e injusta. Mas temos que vivê-la.