quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Encontro


Em 22 de março deste ano, tive uma experiência extraordinária, reservada a poucos: encontrei-me com muitos colegas com os quais cursei o antigo curso ginasial, de 1966 a 1969, no Colégio Estadual Camilo Castelo Branco, assim chamado então, e que fica (ainda hoje) na Rua Pacheco Leão, no Horto, Rio de Janeiro. A entrada principal da escola ficava muito próxima de uma entrada secundária do Jardim Botânico, o que nos ocasionou experiências múltiplas e diversas.

Quando comecei a frequentar o colégio, suas instalações não estavam terminadas e fazíamos Educação Física no campo de futebol do Flamengo, na Gávea. Entretanto, o corpo principal da escola já estava pronto e perfeitamente confortável: salas de aula amplas, arejadas, bem iluminada, corredores largos, banheiros mais que adequados.

Éramos na maioria egressos das escolas primárias públicas do então Estado da Guanabara, filhos da classe média carioca (com raríssimas exceções) e fizemos, todos, o exame de admissão à escola ginasiana. Nosso curso foi de tal grandeza que, até hoje, depois de 30 anos de carreira como professora, ainda acredito que a formação essencial de um estudante se dê no ginásio (ou nos 4 anos finais do ensino fundamental); os três anos restantes do chamado ensino básico (colegial, ensino médio) servem apenas com ampliação do conhecimento adquirido no ginásio.

O encontro que tivemos em 22/05 só fez confirmar as minhas impressões sobre aqueles 4 anos: temos engenheiros, professores, médicos, químicos, biólogos, advogados e muitos outros cujas profissões não me lembro. Importa que todos são pessoas bem sucedidas e, pelo que pude perceber, felizes com suas realizações pessoais e profissionais.

Uns engordaram, outros criaram bigodes ou ficaram carecas, muitos estão com os cabelos brancos, alguns emagreceram, houve cirurgia plástica?, mas o que interessa é que a vida nos levou sempre para o caminho da retidão, da probidade, da valorização do que vale a pena, da vida e da amizade ainda que muito distanciada no tempo e no espaço.

Bons tempos passados, melhores tempos presentes e haveremos de manter sempre 4 anos passados nos próximos anos futuros.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Coq au vin ou Galo à moda de Bourgogne

Georges Simenon era um favorito do meu pai, especialmente os livros do Inspetor Maigret. Durante a década de 80, a Nova Fronteira publicou 20 dos romances policiais do inspetor e, claro, comprávamos à medida que apareciam nas livrarias. Prolífico escritor, Simenon publicou 75 novelas e 28 contos em que Maigret aparecia. Os 20 volumes então publicados estão sob a guarda da Maria Fernanda e, de vez em quando, vamos até lá matar as saudades.


Maigret é um personagem extraordinário: quanto mais leio, mais acredito que os bons escritores são aqueles que gastam menos palavras - buscam, selecionam, escolhem a pertinência do vocábulo e, em poucas linhas, caracterizam personagens, descrevem ambientes e narram os fatos pertintentes. Simenon tem essa habilidade e consegue criar um homem, inspetor-chefe da Polícia Judiciária Francesa, com reputação de excelência nas investigações que faz, e vida própria: é casado, come e bebe.

Comer e beber são atividades prazerosas desse comissário. As refeições são descritas nas novelas e as preferências da personagem são devidamente explícitas: seu aperitivo preferido é o calvados - um destilado à base de maçã, originária da Baixa Normandia, com denominação de origem controlada (como o champagne), e sua bebida é a cerveja. Mas o grande prazer do inspetor é a comida. Aliás, a Sra. Maigret muito citada mas poucas vezes em ação é exímia cozinheira.

Meu pai compartilhava com o inspetor o prazer da mesa e sua curiosidade foi aguçada numa das novelas em que Maigret se deliciava com um coq au vin, num pequeno restaurante no interior da França. E toca a pesquisar como fazê-lo. Acostumados que estamos em colocar no google o objeto de nossas pesquisas e recebermos, em segundos, várias páginas em que se menciona o assunto, não nos lembramos mais de como era fazer pesquisa em livros e bibliotecas.

Ocorre que minha avó materna teve um marido muito exigente com suas refeições - no mínimo três pratos salgados e duas sobremesas e D. Ilka dava conta do recado. Num dos livros herdados, cuja autora se chama Rosa Maria, da década de trinta, havia um Galo à moda de Bourgogne, como segue:

"Tome um galo novo, de boa raça e prepare (sal, limão, pimenta-do-reino). Deite numa panela 2 colheres de sopa de manteiga, alguns quadradinhos de toucinho fresco e leve a fritar para então juntar o galo, com um pouco de sal, pimenta do reino e um ramo de cheiro, e deixe fritar até ficar bem dourado. Polvilhe com uma colher de farinha de trigo, junte umas 30 cebolinhas bem pequenas, um copo de vinho Bourgogne, outro de água e deixe cozinhando em fogo brando por duas ou três horas. Junte algumas trufas ou champignons em rodelas. Arrume no prato os pedaços de galo, e deite no centro as cebolinhas e os champignons, com o molho grosso."

Houve outros livros, outras buscas, mas vocês não fazem ideia da delícia que foi sair com meu pai, comprar os ingredientes e testar a receita. Galo de verdade, nunca fizemos - usamos frango. Nem trufas, só cogumelos. Mas fica muito bom.

Simenon, Georges. A velha senhora. 1ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Sobre memória

A memória já foi objeto de estudos de várias áreas da ciência, mas o que é esse mecanismo afetivo-intelectual na vida da gente? Percebo a memória como uma grande nebulosa que pinta determinados momentos com tintas nítidas. Verdade, ilusão, recriação?

Houve um acontecimento na minha adolescência que envolveu-nos as três Marias: a Cristina, a Eduarda e a Fernanda. Qual das três comeu a banana e errou a mira da lata de lixo, deixando a casca no chão da área de serviço? A Cristina diz que não foi ela, a Eduarda (grande apreciadora de bananas), também e a Fernanda é a caçula, que ficou com a culpa. Foi um acontecimento importante na época porque envolveu um castigo: não assistir na TV ao programa Jovem Guarda. Nossas versões conflitam e cada uma tem certeza de que a sua é a real.

Portanto, ler relatos de memória ou autobiográficos implica na aceitação implícita das memórias do outro.

Baú de Ossos, de Pedro Nava, foi o primeiro livro de memórias que li. Era 1972, ditadura militar e tal, havia uma efervescência cultural no Rio inigualável. Autor tardio, tinha 69 quando lançou o primeiro livro de uma série de seis. Foi leitura obrigatória na cidade. A linguagem de Nava é leve, divertida, crítica e muito livre - todos os assuntos, todos os aspectos, todas as pessoas foram abordados. Não lembro mais de detalhes dos livros, mas a impressão que me ficou é única - como introdução à obra memorialística é magistral. Houve briga em casa pelo volume entre minha mãe, meu pai e mim: quem pegava primeiro, lia até abandonar a leitura, se bobeasse, o livro estava em outras mãos. E comentávamos, como comentávamos...

Pentimento foi o segundo livro de memórias que marcou meu interesse pelo gênero. O título significa "a
parecimento, em telas, de pinturas ou desenhos feitos anteriormente" e descreve a percepção de memória como uma sucessão de fatos, sentimentos, impressões que vão sendo descamados. Lillian Hellman, teatróloga, escritora e personagem influente na vida intelectual americana, foi acusada, junto com seu companheiro de vida inteira, Dashiel Hemmett, de atividades antiamericanas durante o macartismo. São cinco textos sobre pessoas com as quais se relacionou, um deles, Julia, virou filme pela 20th Century Fox. Sua prosa é límpida, direta, muito econômica e carregada de sinceridade.

Invenção e memória, de Lygia Fagundes Telles é a perfeita narrativa de memória porque mistura elegantemente os fatos reais com essa névoa que permeia nossas lembranças. Elegância, na verdade é sinônimo de Lygia. Prosa precisa, aguda, crítica, um dos melhores textos da literatura contemporânea, Lygia desvenda o ser humano (o outro) em suas mazelas, dificuldades, limitações e dores como pouquíssimos autores têm coragem de fazer. Tenho duas dívidas de gratidão com essa autora: foi ela quem me ajudou a introduzir meus alunos em literatura e quem transformou meu filho num grande leitor.

Livros citados:
Nava, Pedro. Baú de Ossos. 1ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora/Sabiá. 1972
Hellman, Lillian. Pentimento. s/e. New York: New American Library. 1973
Telles, Lygia Fagundes. Invenção e Memória. 1ª edição. Rio de Janeiro: Rocco. 2000



segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Maria Clara Pinheiro Guimarães

Na década de 60, um grupo de escritores, jornalistas e doidos de pedra resolveu fazer um suplemento cultural no jornal carioca O dia. Era um jornal do qual jorrava sangue se o espremessem. Daí o inusitado da proposta. Não me lembro bem, mas acho que o suplemento não durou sequer um ano. Minha mãe foi convidada a escrever uma coluna semanal cujo nome era De livros & de mulheres, daí o nome deste blog.

Maria Clara Pinheiro Guimarães - era assim que ela assinava a coluna - já tinha seus cinco filhos e muito tempo na estrada dos livros. Leitora voraz e inteligente, teria sido uma boa crítica literária se se permitisse a tanto. Era leitora de vasto espectro, mas gostava especialmente de literatura inglesa e americana. Ela quem me introduziu a Jane Austen, Charles Dickens, Oscar Wilde, Conan Doyle, Daniel Dafoe, Evelyn Waugh, Virginia Wolf, Daphne du Maurier, Iris Murdoch; aos americanos Hemingway, Scott Fitgerald, Mark Twain, Gore Vidal, Philip Roth, - e tantos outros que descobrimos juntas - Doris Lessing, Truman Capote, Raymond Chandler, Dashiel Hammet, P. D. James - a lista é enorme.

Maria Clara era também cinéfila e gostava de quase todos os gêneros: policial, aventura, espionagem (Sean Connery era um de seus favoritos), faroeste - tão eclética no gosto cinematográfico quanto no literário.

C
larinha costurava, bordava, fazia tapeçaria e cozinhava - sempre muito bem. Não havia tarefa a que se propusesse fazer que não fizesse com extremo zelo e capricho. Tudo o que saía de suas mãos tinha acabamento perfeito. Houve uma época em que se dedicou a fazer aventais de algodão cru: numa época em que cozinhar ainda não era moda, produziu peças lindas, com acabamento de sinhaninha colorida em toda a volta do avental e um monograma em tons degradês da mesma cor da sinhaninha. Todas as mulheres, cozinheiras ou não, queriam ter um.

P
or que escrever no passado? Muita gente não entende isso, mas mamãe tem mal de Alzheimer e já não se lembra de quem é, e a Maria Clara que amei e que foi minha grande interlocutora a vida inteira, não existe mais. A vida é má e injusta. Mas temos que vivê-la.